Descobri algo interessante há alguns anos. O uso do concreto, uma invenção do passado, num momento da história se perdeu. Na Idade Média, muitos lugares da Europa se esqueceram do concreto e começaram a usar outros materiais. Só depois nos séculos XVIII, XIX voltou-se a usar com mais intensidade o concreto. E isso acontece com os conceitos também. Existem conceitos que criamos e que se perdem se não forem cultivados. A criança sempre existiu, mas a infância é um conceito que foi criado. Quando Aristóteles fala sobre a família ter que cuidar da educação da criança a partir dos valores e da moral, existe um lampejo de criação da infância para os gregos. É claro que, quando ele fala da criança grega, fala do menino da elite ateniense. O recorte era esse. As meninas não eram consideradas, nem os escravos e muito menos os estrangeiros. Essa infância grega é um começo de tentativa de pensar esse conceito. No Império Romano, começa-se também a se ter uma ideia de infância, mas aos poucos esse conceito vai se perdendo e, na Idade Média, ele se dilui completamente. Philippe Ariès escreveu sobre como era a infância na época medieval, sobre como, na verdade, ela não existia. Criança com sete anos já trabalhava. Não existia, na Idade Média, roupa para criança, médico para criança, livro para criança. Muitas vezes não havia nem tempo hábil para por nomes nas crianças porque elas morriam, morriam o tempo todo. É por isso que até o final do século XIV, os testamentos não mencionavam o nome das crianças. Uma curiosidade sobre esse momento histórico e que mostra como essa fase inicial da vida tinha pouco ou nenhum valor social é o próprio significado da palavra “criança”, que segundo um dicionário francês do século XVIII a palavra designava posições de subalternas como soldados, lacaios, auxiliares, todos chamados muitas vezes de “crianças” por seus chefes. Outra curiosidade é que os soldados que estavam na primeira fila, ou seja, os que morreriam primeiro, eram chamados de “crianças perdidas.” Outro dado que mostra bem como o conceito de infância foi sendo construído ao longo de muito tempo, foi a horrível prática do infanticídio, algo bem comum antigamente. Somente em 374 d. C foi promulgada uma lei em Roma proibindo o infanticídio. A lei surgiu, mas sua eficiência demorou séculos para se fazer sentir. Quando a infância vai surgir como conceito, então? A partir dos séculos XV, XVI, quando surge o mercantilismo, esse arcabouço do capitalismo, as pessoas começam a ter um pouquinho mais de prosperidade e resgatam um pouco esse mundo greco-romano, principalmente no que se refere à infância. Elas começam a olhar para a criança como uma perspectiva de futuro, de legado, de herança. E um dos principais nomes responsáveis por essa transformação foi Erasmo de Rotterdam. Lutero, que junto com advento do o protestantismo, e da prensa móvel de Gutenberg, também ajudaram bastante no nascimento do conceito de infância. Mas acredito que foi mesmo Erasmo de Rotterdam, que de forma mais objetiva que contribuiu para o alvorecer da infância. É só ler De Pueris (dos Meninos), A civilidade Pueril. Essa é uma obra que foi publicada em 1530 e que teve mais de 30 reedições enquanto o Erasmo estava vivo e depois mais de 130 reedições, um best-seller! A obra em muitos aspectos continua atualíssima. Erasmo diz, por exemplo, que não existe nada mais tenebroso do que uma criança que se comporta como um adulto. Que se parece com um adulto, que fala e se veste como um adulto. Erasmo começa, então, a criar uma separação entre o mundo da criança e o mundo do adulto. Antes, tudo era misturado, crianças e adultos. A sexualidade era junta. Existem textos da época medieval, diários de reis que contam de quando eram crianças, de como suas babás, suas pajens mexiam com eles corporalmente, fisicamente, sexualmente. Havia uma promiscuidade muito grande entre a criança e o mundo adulto. Não tinha separação. Erasmo entra com um conceito novo e revolucionário para a época, quando ele diz que a infância é uma fase diferente do mundo adulto. Que, para se conquistar o mundo adulto, é preciso haver fases, caminhos. Um dos caminhos para essa conquista do mundo adulto é a educação. O mundo infantil, para Erasmo, deveria ser preservado e alimentado, aliás, uma das etimologias da palavra “aluno” é “ aquele que foi alimentado.” A noção de vergonha, intimidade, singularidade também vão fazer parte desse alvorecer da infância.
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