Dezenove de junho de 2007: uma bela manhã como tantas outras que já passei na vida. O piloto automático foi acionado: preparar mamadeiras, trocar fraldas, levar as meninas à escola, voltar, ler os jornais, tomar banho, sair de casa… Tudo parecia perfeito, de acordo com o programa: Como levar uma vida pequeno-burguesa sem sobressaltos. No fim da tarde desse mesmo dia, um telefonema mudou minha vida. Meu pai estava no outro lado da ligação, pedindo que o levasse ao hospital porque estava se sentindo um pouco mal. Assim que desliguei o telefone, me vesti, peguei a chave do carro e novamente tocou o telefone: era minha mãe gritando para eu correr até a casa deles.
Corri como nunca antes na vida. Ao chegar, lá estava meu pai deitado no corredor, pupilas dilatadas, respiração ofegante. Imediatamente liguei para o hospital e, deitado ao lado dele, fui recebendo instruções de uma enfermeira. Não parecia, segundo ela, algo relacionado ao coração; assemelhava-se mais a alguma complicação cerebral.
Nesses minutos, enquanto aguardávamos a ambulância, fiquei falando com meu pai. Todo o seu lado direito parecia paralisado; o esquerdo ainda tinha pequenas reações musculares. Fiz algumas perguntas para ele e pedi que respondesse piscando uma ou duas vezes os olhos. Esses foram os últimos diálogos da minha vida com o meu pai. Depois de dois dias, foi diagnosticada morte cerebral.
Por que falar dessa experiência tão dolorosa, e pela qual tantos outros já passaram, aqui neste livro?
Meu pai era a correção em pessoa em matéria de saúde: não bebia, não fumava, era maratonista, corria mais de dez quilômetros por dia, comia só alimentos saudáveis, fazia exames periódicos. Aparentemente ele tinha o controle da vida; porém, o imponderável, o imensurável o levou embora.
Este livro tentará mostrar como a sociedade e, mais especialmente, a educação e a literatura estão cada vez mais preocupados em minimizar os efeitos colaterais da vida para as crianças, fornecendo-lhes doses diárias daquilo que se convencionou chamar de “politicamente correto”.
O pensamento adulto seria o de proteger a criança: falemos só de coisas boas, exaltemos a felicidade, a saúde, a família, a natureza e não nos atrevamos a falar sobre o outro lado, “o lado escuro da força”, como diria Darth Vader.
O relato da morte do meu pai é a prova de que criamos uma ilusão de controle sobre a vida: o outro lado ganha força quando o esquecemos ou rejeitamos. O politicamente correto é negação da própria vida.
Mas sempre foi assim? O politicamente correto está ganhando mais força atualmente? Como se contrapor a esse movimento? O que adultos têm feito com essas questões? Como a literatura destinada às crianças tem reproduzido isso? São essas as perguntas que pretendo discutir. O tema é tão atual que não consigo dar conta da avalanche de material que cai em minhas mãos. Sou um profissional da área da educação e da literatura, o que faz com que meu contato com os desafios do enfrentamento com o politicamente correto seja quase diário.
Imbuído dessa temática até o último fio de cabelo, tomei uma decisão perigosa: fugir do politicamente correto acadêmico. Isto é, não busquei uma linearidade racional na minha investigação, fiz sobrevôos, saltos e mergulhos teóricos de forma às vezes babélica. Sei das consequências possíveis dessa decisão, mas resolvi arriscar. O tema que escolhi para discorrer faz parte da minha vida, motivo pelo qual tenho muita dificuldade de buscar uma neutralidade, uma objetividade. Pascal no século XVII já refletia sobre a questão da neutralidade:
O homem não é mais do que um sujeito cheio de erro natural, e inapagável sem graça. Nada lhe mostra a verdade. Tudo o engana. Estes dois princípios de verdade, a razão e os sentidos, além de faltar a cada um sinceridade, enganam-se reciprocamente; os sentidos enganam a razão por falsas aparências. E esse mesmo logro que aplicam à alma, dela o recebem de volta por sua vez; ela revida. As paixões da alma os perturbam e lhes causam impressões falsas. Ambos mentem e se iludem à porfia (2005, p. 17).
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